Empinando Sonhos


Quando ele entrou em casa, pegou as cartas que haviam sido cuidadosamente empurradas por baixo da porta e seguiu para o sofá. Largou-se ali. O dia havia sido exaustivo diante de tanta papelada e burocracia no trabalho. Pensou, rapidamente, no emprego que havia arranjado. Era seu primeiro trabalho e estava progredindo, devia se orgulhar. Sempre sonhara em ter um grande emprego e ser um excelente profissional.
Entre a correspondência, contas, contas, contas. E uma carta solitária, num envelope bem dobrado e quente. Estranhou. Não recebia cartas há anos. Olhou o campo do remetente enquanto afrouxava a gravata. Era de uma amiga que há tempos não falava. Artista, ela. No momento, trabalhava também em algo sério, mas sua alma jamais deixaria de pertencer à arte. Mal sabia que a dele também.
Ela começava:
"Meu amigo, quanto tempo. Fui à praia, andei na areia e toquei o pier. De repente, pensei em você e em mim. Nossa amizade é como a areia, não é? Construída na totalidade de grão-em-grão. Muda de forma, muda o jeito, mas no fim, está sempre ali. E é por isso que ao escrever para alguém, outra pessoa não podia ser. Tive um sonho, que ainda tenho e agora sempre terei. Meu sonho, em mim como meu sangue, é morar num sótão. Pequeninho, com gavetas e prateleiras. A única coisa grande é a vontade de estar ali e a janela, um triângulo isósceles que ilumina o sótão e deixa-o grande. Só isso é grande, só isso é meu grande sonho."
A carta acabava assim, sem mais informações. Mas a relação deles sempre fora assim. Sem mais, ele entendia ela, ela entendia ele. E, diante desse entendimento maior, ele sabia que ela iria atrás do sonho. O sótão já existia, em algum lugar, e ela encontraria, nem que fosse no momento mais íntimo e reservado dela.
Talvez nunca mais se vissem. Foi o primeiro pensamento triste que lhe ocorreu. Depois, começou a pensar sobre seus sonhos. Lembrou-se, inclusive, das vontades de criança. Voar seria sua maior vontade.
Foi até a venda mais próxima e comprou uma pipa, a qual empinou do lado de fora do terreno de sua casa. Ficou olhando a pipa durante horas, ali, voando no céu. Seu sonho era ser um soltador de pipas, e só. Compraria uma casa pequenininha, com paredes próximas e teto baixo. A única coisa grande seria uma enorme pipa vermelha e preta que teria ao lado. E, todos os dias, se colocaria a soltar a pipa enquanto todos na rua olhavam maravilhados.
Da mesma forma como ele estava agora. A noite caiu, e caiu a pipa. Caiu na real, cairam os sonhos. Precisava terminar um trabalho, que durou a noite toda.
Acordou do sono rápido que tirou, acordou do sonho e acordou. Perdera aquele momento que era sua chance única de viver seu sonho. Pelo menos, era o que pensava. Ainda não havia percebido que, como a menina, a qualquer momento podia escrever para alguém contando que tinha pego sua linha e, com sua pipa embaixo do braço, saiu por ai procurando novos ventos que o fizessem voar de encontro ao seu sonho.

Comentários

Nathalia Toledo disse…
Que bonito. Delicado... Gostei. :)


Obs.: mas pq o raio da pipa tem que ser vermelha e preta??? hehe..
Camilla Lima disse…
voce é demais =DDDDD

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