Peças

Enquanto a água corria toda a extensão de minha pele, eu me pegava olhando o perfeito mosaico que os azulejos brancos do banheiro formavam. Era uma sensação esquisita perceber algo que sempre estivera ali, mas você nunca prestara real atenção. Aos olhos de uma pessoa desavisada, desatenta, aqueles azulejos não tinham sequer uma mínima importância. Aos meus, contudo, aquilo dizia muito.
Não me lembrava dos últimos dias. Seria efeito da bebida, ou de uma memória seletiva, eu não sei, mas o fato era que não restava uma imagem em minha mente dos dois últimos dias. E como havia chegado ali, naquele banheiro tantas vezes presenciado, mas não percebido, eu também não sabia. A única informação da qual tinha certeza: era eu quem estava ali. Conhecia minhas mãos, meus pés, meu corpo, tudo. De forma alguma era uma pessoa desconhecida. Cada defeito que em mim é traço essencial estava ali presente naquele momento de total desconforto.
Os azulejos, contudo, formavam figuras familiares nas minúcias. As linhas retas, a cor do vazio que ali me rodeava, o cimento que os unia. É esquisito, pensei, lembrar-se apenas dos azulejos. Aqueles passavam na minha vista a cada cair da água por cima dos meus olhos. Em cada piscada, uma nova figura, uma nova forma, uma lembrança nova, o mesmo eu e os mesmos defeitos. Nu, em branco, em azulejo, em mosaico, me encontrei num caso clássico de doppelganger, um duplo.
Entrei ali um, e por um simples abandono das situações que tinha vivido há pouco, saía outro, as novas informações construídas uma a uma, ao lado da outra, num mosaico que para mim fazia sentido. Saí outro, deixando para trás, sobre o branco dos azulejos, o meu vermelho antigo das veias.

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